Ser Universitario
 

O trote e o nosso incurável atraso

02/03/2015 - 03:01h

Dona Antônia certamente vai escrever para mim. Dona Antônia fica muito triste quando digo algo que desabone "o nosso maravilhoso Brasil, um país lindo, tropical, onde não há vulcões, tornados, tsunamis etc.". Dona Antônia mora num condomínio duma cidade paulista, famosa justamente por seus condomínios (fechadíssimos). A existência de um sem-número desses condomínios país afora prova que "o nosso Brasil" é mesmo "maravilhoso".

Sinto muito, Dona Antônia, mas a senhora vai ficar triste novamente. Re/começaram as aulas nas nossas universidades, e com elas veio outra prova inconteste do nosso secular e incurável atraso.

Repito Paulo Freire: "A leitura do mundo precede a leitura da palavra". A barbárie que se vê todos os anos na boçal prática do trote nas nossas "Universidades" comprova o que Joaquim Nabuco escreveu há mais de cem anos: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil".

O que é essa estupidez sem fim senão a perpetuação de uma prática que tem por trás a ideia de que calouros são escravos de veteranos, que, por sua vez, quando calouros, foram escravos de veteranos, que, por sua vez, quando calouros, foram escravos de veteranos, que...

Há algum tempo, participei de um programa de TV no qual se discutiu o trote. Eu disse o que penso de QUALQUER trote (o assassino, o "solidário", o "cidadão" etc.): é pura ditadura, já que não se concede à vítima a hipótese do não. É proibido recusar. Eu era um estranho no ninho... Fui até motivo de troça.

Acabara de ocorrer um caso medonho numa Faculdade de medicina, em que um calouro foi queimado. Eu disse que é inconcebível que numa escola de medicina se pratique tamanha barbárie. Recebi mensagens de médicos e futuros médicos que me perguntavam o que eu tinha contra eles... Talvez tivesse sido melhor não responder, mas eu disse que, a priori, contra médicos e futuros médicos não tenho nada, mas contra monstros burros tenho tudo.

Foi preciso que corajosas alunas da medicina da USP resolvessem denunciar o nojo que se dá nas "festinhas" para que a faculdade descobrisse a pólvora: nada de orgias, digo, nada de festas na faculdade (e nada de barbárie, também). A tragédia com o estudante chinês não bastara para pôr fim ao ritual macabro.

Quando olho para um médico, fico com vontade de perguntar-lhe se ele participou dessa estupidez quando aluno. Quando entrevistei o grande e querido escritor e médico Moacyr Scliar, meu companheiro de feiras do livro Brasil afora, disse-lhe que não confio em médicos que não leram Fernando Pessoa, Machado de Assis etc. Ele sorriu, como que concordando com o pensamento.

O que se faz numa conceituada escola paulista de agronomia é o atraso do atraso do atraso. Calouros são levados de madrugada a um canavial, onde são abandonados. Detalhe: a única coisa que se lhes deixa é cachaça. Sem comentários.
É dessa alta nobreza que sai a "elite" do Brasil. Gente insensível, bruta, burra e besta, com muitas e gloriosas exceções, é claro.

Dilma Rousseff, que foi torturada, não entende ou finge que não entende que trote é tortura. Nem ela nem todos os presidentes anteriores a ela. Nem eles nem todos os ministros da Justiça da história deste infame país, Dona Antônia. A leitura da realidade precede a leitura da palavra, caro leitor. É isso.

inculta@uol.com.br

pasquale cipro neto

Pasquale Cipro Neto é Professor de português desde 1975. Colaborador da Folha desde 1989, é o idealizador e apresentador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de várias obras didáticas e paradidáticas. Escreve às quintas na versão impressa de "Cotidiano".



Fonte: Uol


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