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Até para ser malandro...

01/05/2014 - 18:01h

O caro leitor talvez não saiba, mas entre os estudiosos dos fatos da língua há uma velha discussão sobre a importância e o Emprego da norma culta. A discussão começa pelo conceito de norma culta, que nem de longe é ponto pacífico entre os especialistas.

Há aspectos sobre os quais não pairam dúvidas. Um deles, por exemplo, diz respeito à concordância (verbal e nominal): o que é predominante na linguagem oral (independentemente da classe social do falante) não costuma ocorrer no padrão escrito culto.

Tradução: na oralidade, é comum o verbo não concordar com o sujeito, qualquer que seja a ordem ("Os manual chegou"; "Chegou os manual"); na linguagem culta, a concordância é regular ("Os manuais chegaram"; "Chegaram os manuais").

O caro leitor talvez se lembre da descabida polêmica que envolveu o livro "Por Uma Vida Melhor", no qual há um capítulo que aborda com muita propriedade as diferenças entre fala e escrita, variedade popular e variedade culta. Convém lembrar que esse livro é destinado ao "EJA" ("Educação de Jovens e Adultos"). Em que pese o equivocadíssimo barulho feito por boa parte da imprensa, da sociedade, dos congressistas e até de Professores e educadores, nem de longe o livro prega a ideia de que a norma culta é inútil, e também não prega a tola tese de que qualquer variedade de língua é boa em qualquer situação.

Lembra quando, em Santa Catarina, a Polícia Rodoviárial prendeu malandros que dirigiam um veículo cuja placa era de "Frorianópolis" E quando a PM paulista prendeu bandidos que queriam entrar num condomínio com um caminhão em cuja lateral se lia algo "Impório Santa Maria" Havia até o endereço do site do "impório" na lateral do caminhão (www.imporiosantamaria.com.br). Não faltou coerência a esses larápios...

A gatunagem não se cansa de tentar fisgar incautos. Veja só o texto de um e-mail que recebi recentemente: "Atendendo a uma reclamante foi gerado uma queixa de crime em seu cpf/email, estamos entrando em contato para a apresentação da mesma. Para maiores esclarecimentos do Boletim de Ocorrencia, na qual a sua pessoa tera que efetuar o comparecimento. Na data e local especificado. Com os documentos de identificação. Confira na Ocorrencia os Documentos".

Nos mais importantes concursos públicos do país, costuma-se pedir aos candidatos que identifiquem marcas da linguagem oral presentes num texto escrito. Também se pede que o texto seja reescrito, de acordo com o português formal. No e-mail citado, o que é típico da linguagem oral. Pelo menos dois pontos chamam a atenção: "foi gerado uma queixa" (o sujeito é "queixa", portanto "foi gerada uma queixa"); "na qual a sua pessoa" ("a sua pessoa" no lugar de "você", "o senhor", "a senhora" é típico da oralidade de alguns grupos sociais).

Para adequar o texto ao português escrito formal, é necessário alterar quase tudo, escrever de novo, tamanha a ruindade do original. Falta vírgula depois de "reclamante"; não se trata de "queixa de crime", mas de "queixa-crime"; o emprego de "mesma" como elemento que representa algo já citado não é frequente no padrão formal; falta acento em "terá" e em "ocorrência"; o emprego de "na qual" é descabido etc., etc. etc.

Até para ser malandro talvez seja preciso algum refinamento (linguístico, no caso), embora não seja improvável malandros obterem sucesso sem esse refinamento e incautos letrados caírem nessas arapucas. É isso.

inculta@uol.com.br

pasquale cipro neto

Pasquale Cipro Neto é Professor de português desde 1975. Colaborador da Folha desde 1989, é o idealizador e apresentador do programa "Nossa Língua Portuguesa" e autor de várias obras didáticas e paradidáticas. Escreve às quintas na versão impressa de "Cotidiano".



Fonte: Uol


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